Rafael Frigo Flores
“Babel” (2006) é o último filme da trilogia de Iñárritu que, com “Amores Perros” (2000) e “21 Gramas” (2003) conclui uma sequencia de considerações sobre a morte. O problema de “ser capaz de acolher a morte” unifica as três histórias.
Os títulos são sugestivos. Todos colocam-se ENTRE dois planos aparentemente inconciliáveis, como se dissessem que ali, exatamente NA tensão entre os planos, a vida habita. Assim, “Amores Perros” vincula e opõe o amor e a brutalidade. “21 Gramas” aproxima e afasta os temas do ‘estar vivo’ e ‘estar morto’, as muitas mortes que se vive em muitas vidas. “Babel” refere, obviamente, à confusão de línguas.
Confusão de muitos níveis, entretanto. Para além da confusão geográfica ou cultural, que parece situar os personagens em mundos diferentes (a trama vincula japoneses, marroquinos, mexicanos e norte-americanos), há uma confusão mais profunda, ali onde todos se igualam: na relação entre a vida e a morte, em suas linguagens. Uma questão fundamental do filme é saber escutar a morte.
O núcleo da história é uma arma, um tiro, verdadeiro “disparador” de questões. Essa arma foi dada a Hassan (Abdelkader Bara), um guia marroquino, por um caçador japonês, Yasujiro (Kôji Yakusho). Dela parte o disparo que atinge Susan Jones (Cate Blanchett), em férias no Marrocos com o marido Robert Jones (Brad Pitt). Ambos tentam reerguer um casamento em crise. De saída, portanto, três imagens, três figuras da morte: a caça, o desentendimento e a fome, encarnada pelas famílias marroquinas em permanente luta contra a extinção.
Ressoando com essas histórias “maiores”, três histórias “menores” correm paralelas, todas relacionadas aos filhos dos personagens da trama central. Cheiko Wataya, a filha do caçador japonês, surda-muda, luta para se haver com o suicídio da mãe. Ao mesmo tempo, tem de encontrar lugar para o despertar inquietante da sexualidade. Os filhos do casal Jones, cujo irmão menor “morreu dormindo”, perdem-se num deserto na fronteira entre os EUA e o México, levados pela babá mexicana. Finalmente, Yussef e Ahmed, filhos de um casal marroquino, vivem numa solidão tão extrema que amor e ódio somente podem circular entre eles, internamente à família. O tiro que liga a trama do filme acontece depois de uma disputa de ambos pelo amor da irmã.
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Aqui também há figuras que tendem para a morte. Elas aparecem como oposições, diferenças, perspectivas inconciliáveis: a assepsia medrosa de Susan e a maneira direta e rude com que ela é cuidada num vilarejo marroquino; o mutismo da jovem japonesa e a saturação de estímulos que a cercam; a ingenuidade das crianças norte-americanas e a malícia de um casamento mexicano, etc. Tais contrastes são importantes porque dramatizam a tensão NO vivo, como parte inescapável da existência. Ao contrário, a morte se caracteriza como ausência de tensão.
Essa dualidade talvez fique mais clara do ponto de vista da religião. De fato, do lado marroquino, percebe-se uma religiosidade dura e onipresente, espécie de limite organizador daquelas existências “por um fio”. Contrastando com isso, o que se vê é uma religião difusa e apagada nos americanos, cuja existência, por outro lado, pareceria mais assegurada. Ambas entretanto têm a mesma função: encontrar um lugar para a morte EM FUNÇÃO DA VIDA. Dar sentido à experiência absurdamente muda da morte, impedindo-a de vazar sobre o tecido vivo, calando-o ainda prenhe de ditos.
Aqui o contraste quiçá se revista de crítica: a morte esvaziada dos americanos, seu temor desajeitado frente a finitude (personificada na intolerância dos turistas que acompanham os Jones e que não se permitem esperar pela melhora de Susan), sugere antes uma negação do que um lugar. Talvez a morte já não encontre mais lugar em certas culturas? Entretanto o filme se encarregará de mostrar que ACOLHER a morte é fundamental para o próprio movimento do viver.
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O tema do acolhimento faz par com o tema da morte, e nesse contexto as histórias “menores” subvertem a ordem e se apresentam como as mais importantes. Cheiko, a jovem japonesa, talvez seja o exemplo mais acabado de como isso aparece no filme.
O suicídio de sua mãe atua nela como uma ferida aberta, exigindo um lugar em sua vida para a experiência da morte. Ela, no entanto, o ignora, seja culpando o pai pelo suicídio, seja ensaiando culpar-se (e desculpar-se) a si mesma.
Mais precisamente, a culpa representa aí a incapacidade de experienciar a morte enquanto tal, isto é, enquanto outro, outridade, de forma que uma dissociação se instaura: OU a morte é controlada pelo EU (a culpa sendo a única alternativa para a morte de alguém que se ama, como se o EU fosse a causa da morte) OU a morte é uma experiência sem sujeito, da mesma forma que o sujeito é uma experiência sem morte. O fato da personagem ser surda-muda é quase a imagem dessa sua posição.
Se a morte é culpa ou experiência dissociada, a jovem tentará contorná-las através do vínculo, da sexualidade. Porém, mesmo aí a morte prolifera; pois a personagem, expondo-se cruamente, busca apenas ser desejada, para que o desejo do outro lhe permita sentir-se menos culpada. Não se trata de constituir aí, na relação com o outro, uma capacidade de acolhimento da finitude pela grande via da sexualidade.
Obviamente, essa relação dissociada liga-se diretamente ao tema da crítica acima exposto, e dá à problemática da jovem status de paradigma no contexto do filme. Malogrando continuamente em recusar um lugar para a morte em sua vida, será apenas através da aprendizagem do ACOLHIMENTO da finitude que Cheiko poderá superar a morte de sua mãe. Num nível mais amplo, esse acolhimento funciona como modelo de uma relação saudável com a finitude.
Aprender é uma relação de amor e ódio, e no filme não será diferente. Sentindo-se atraída pelo detetive Kenji (Satoshi Nikaido), a jovem busca entregar-se a ele à força. O detetive, entretanto, apenas a acolhe: SUPORTA sua ação. Sem rejeitá-la (o que aumentaria sua culpa) mas também sem seguir-lhe as sugestões (o que também demandaria novas auto-recriminações), ele permite que ela prolongue sua existência nele, experimente-o como um meio, para só então a descontinuar. Ele relaciona-se com ela nessa forma intermediária entre o controle onipotente e a negação – o acolhimento – que, sem recusar nenhum dos extremos, os ultrapassa rumo a algo que nenhum dos dois alcança: uma TROCA com a alteridade.
Mostra, com isso, uma face da morte que a jovem não podia sustentar sozinha: o abismo que existe entre um ser humano e outro, a solidão inescapável em que vivemos necessariamente. Essa exposição EM ATO de uma figura da morte, entretanto, redunda em vida: pois só então a jovem pode perceber que seu objeto de amor (o detetive, mas também a mãe) é algo independente dela. Passo essencial para que ela possa libertar-se da culpa.
Ao mesmo tempo, acolhendo-a sem julgá-la (“não precisa se desculpar”, ele diz a ela), o detetive lhe oferece também um modelo de relação sem culpa, que a jovem poderá introjetar e utilizar de si para si. Talvez só então ela consiga viver a culpa pela morte da mãe, para além da dissociação entre o EU e a morte que existia antes. Sofrer, porém, mais uma vez, significa dar um passo À FRENTE em direção à saúde.
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A grande sugestão do filme talvez esteja aí: ser capaz de acolher a morte, sem julgá-la, é uma relação mais potente com a finitude do que a pura exclusão dissociada. Tanto que a oposição maior da história não é a da vida “versus” a morte, mas a que existe entre culpa e acolhimento, como duas formas de acolher, em vida, a finitude. As demais histórias repetem todas, a seu modo, esse refrão.
Essa relação feliz e talvez ‘terapêutica’ entre Chieko e o detetive é destacada ainda pelo antagonismo da relação entre a babá mexicana das crianças Jones e um policial americano. A babá, querendo participar do casamento de seu filho no México, leva consigo os garotos, tencionando trazê-los de volta logo após. Porém, tem problemas para voltar aos EUA, e perde-se com os meninos no deserto que circunda a fronteira. Sugestivamente, um deserto aparece também das falas trocadas entre a babá e o policial, depois que a mesma é encontrada e presa. O policial americano não cessa de lhe lembrar suas faltas, sua culpa, enquanto ela não cessa de negá-las. O deserto da culpa parodiando o solo mais feliz do acolhimento possível.
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Babel, enfim, a confusão das línguas, é antes de tudo a confusão da não-escuta. Impedir-se de escutar, matar sua capacidade de acolhimento é substituir uma potência de criação e vida pela morte enquanto critério. Instaura-se assim um deserto em toda fronteira. Afirmando-a, ao contrário, é à capacidade viva de acolhimento que nos entregamos, tornando-nos de certa forma seus agentes. Quem sabe assim a vida transborde sobre a morte, deslocando-a?
Acolhimento e sexualidade, como símbolos máximos desse transbordar, a meio caminho entre a negação e o controle onipotente, alí onde abrigamos a alteridade e com ela transacionamos algo – esse local de pura fertilidade é o ponto de fuga no horizonte que Babel parece continuamente nos apontar.
Por Rafael Flores, 2009
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